Por que falar sobre abortamento recorrente
Perder uma gestação é uma experiência dolorosa. Quando isso acontece mais de uma vez, a angústia cresce e as dúvidas se multiplicam. O abortamento recorrente, definido como duas ou mais perdas gestacionais precoces, é mais comum do que parece e merece atenção cuidadosa. Cerca de 10 a 20% das gestações terminam em aborto espontâneo, e uma parcela das mulheres terá essa experiência repetidamente. A boa notícia é que, com investigação adequada e cuidados direcionados, a maioria dos casais consegue uma gestação saudável no futuro. Neste guia, você vai entender quando investigar, o que pode estar por trás das perdas, quais exames realmente importam e quais tratamentos fazem diferença — tudo de forma clara, prática e atualizada.
Quando investigar o abortamento recorrente
A recomendação atual de muitas sociedades médicas é iniciar a investigação após duas perdas gestacionais consecutivas no primeiro trimestre. Antes, orientava-se aguardar três perdas, mas aprendemos que antecipar a avaliação reduz sofrimento e permite corrigir fatores modificáveis mais cedo. Em perdas no segundo trimestre, a investigação costuma ser indicada após um único episódio, pois há maior chance de haver uma causa estruturada por trás.
Depois de quantas perdas?
– Duas perdas consecutivas no primeiro trimestre já justificam avaliação especializada.
– Uma perda no segundo trimestre (após 12-14 semanas) também é motivo para investigar.
– Em mulheres com mais de 35 anos, com histórico de dificuldade para engravidar ou com fatores de risco conhecidos (por exemplo, doenças da tireoide), vale discutir com o ginecologista a possibilidade de investigar após uma perda.
– Perdas após visualização de batimento cardíaco embrionário merecem análise minuciosa, ainda que isoladas.
Casos especiais que pedem atenção imediata
– Perda com quadro clínico grave (sangramento importante, necessidade de transfusão, febre ou sinais de infecção).
– História pessoal de trombose, trombofilias na família ou doenças autoimunes (como lúpus).
– Suspeita de malformação uterina, miomas submucosos ou cirurgias uterinas prévias.
– Alterações de tireoide conhecidas sem tratamento otimizado.
– Perdas fetais tardias ou repetidas restrições de crescimento fetal.
Principais causas e como elas atuam
O abortamento recorrente é multifatorial. Às vezes, há uma causa clara. Outras vezes, o quadro resulta da soma de pequenos fatores. Entender os mecanismos ajuda a direcionar os exames e o tratamento.
Alterações cromossômicas
A causa mais frequente de perdas precoces está nas alterações cromossômicas do embrião, como trissomias e monossomias. Elas respondem por 50 a 60% dos abortos no primeiro trimestre. Com o avanço da idade materna, aumenta a chance de erros na divisão celular, elevando o risco de aneuploidias e, consequentemente, de perdas.
Existe ainda a possibilidade de um dos pais carregar uma alteração cromossômica equilibrada (como uma translocação balanceada). Nessa situação, o adulto é saudável, mas há risco aumentado de embriões desequilibrados e abortos de repetição. Embora essa seja uma causa menos comum, pode estar presente em uma pequena parcela dos casais com abortamento recorrente e justificar exames genéticos específicos.
Fatores uterinos e hormonais
Alterações no útero podem dificultar a implantação e a manutenção da gestação. Entre as principais:
– Malformações congênitas, como útero septado.
– Miomas submucosos, que deformam a cavidade uterina.
– Sinequias (aderências) após infecções ou cirurgias.
– Insuficiência istmocervical, associada a perdas de segundo trimestre.
No campo hormonal, desequilíbrios podem atrapalhar a qualidade do endométrio e a sustentação da gestação:
– Hipotireoidismo e hipertireoidismo descompensados estão ligados a maior risco de perda.
– Diabetes mal controlado aumenta complicações, inclusive abortamento.
– Hiperprolactinemia e alterações ovulatórias (como na síndrome dos ovários policísticos) podem influenciar o ambiente endometrial.
– A “insuficiência lútea” isolada é controversa, mas em alguns cenários o suporte de progesterona pode ser considerado.
Trombofilias e causas imunológicas
As trombofilias são condições que aumentam a tendência à formação de coágulos. Na gravidez, isso pode comprometer a circulação placentária, dificultando a nutrição do embrião e levando a perdas.
O que são e como identificar
Existem trombofilias hereditárias (como a mutação do fator V de Leiden, mutação da protrombina, deficiência de proteína C, proteína S ou antitrombina) e trombofilias adquiridas, com destaque para a síndrome antifosfolípide (SAF).
– Na SAF, o organismo produz anticorpos que interferem na coagulação e na função placentária. Os principais são: anticoagulante lúpico, anticardiolipina e anti-beta-2 glicoproteína I. Para confirmar, é preciso testagem em dois momentos, separados por 12 semanas.
– Nas trombofilias hereditárias, a indicação de investigação costuma ser mais forte quando há história pessoal de trombose, perdas tardias, complicações placentárias (como pré-eclâmpsia grave) ou familiar de trombose.
– Exames de sangue específicos ajudam a diagnosticar trombofilias, permitindo traçar um plano de manejo para a próxima gestação.
Importante: nem toda perda precoce se deve a trombofilia, e a interpretação dos exames exige experiência. A avaliação deve ser individualizada.
Opções de tratamento
Quando a síndrome antifosfolípide é confirmada, o tratamento com ácido acetilsalicílico em baixa dose e heparina de baixo peso molecular costuma melhorar significativamente as taxas de nascido vivo. Esse cuidado geralmente é iniciado no positivo do teste de gravidez (ou, em casos selecionados, na tentativa de concepção) e mantido durante a gestação e parte do puerpério.
Nas trombofilias hereditárias, a conduta varia conforme o tipo de trombofilia e o histórico de eventos trombóticos. Pode-se indicar aspirina isoladamente ou associada à heparina, sempre com acompanhamento próximo.
Além disso, otimizar tireoide e glicemia e ajustar outros fatores de risco (tabagismo, sedentarismo) é parte essencial do plano.
Exames e diagnóstico passo a passo
Uma avaliação criteriosa evita testes desnecessários e foca naquilo que realmente muda o desfecho. O objetivo é identificar causas tratáveis, reduzir riscos e planejar a próxima gestação com segurança.
Avaliação inicial
– História clínica detalhada: idade, número de gestações, em que semana ocorreram as perdas, presença de batimento cardíaco embrionário antes da perda, sintomas associados (sangramento, febre), cirurgias uterinas anteriores, doenças crônicas, uso de medicamentos e hábitos de vida.
– Exame físico e ginecológico: pode sugerir alterações estruturais ou hormonais.
– Ultrassonografia transvaginal e, quando indicado, histerossalpingografia, ultrassom 3D ou histeroscopia diagnóstica para avaliar a cavidade uterina.
– Exames laboratoriais básicos: TSH e, se necessário, T4 livre e anticorpos antitireoidianos; hemoglobina glicada; prolactina; avaliação de insuficiências nutricionais (como vitamina D e ferritina) quando clinicamente relevantes.
Testes dirigidos
– Estudo genético do material gestacional (quando possível): ajuda a diferenciar perdas por aneuploidia (frequentes e geralmente esporádicas) de outras causas.
– Cariótipo dos pais: indicado especialmente quando há perdas repetidas com cariótipo fetal normal, história familiar sugestiva ou em casais com três ou mais perdas.
– Painel de trombofilias: inclui pesquisa de fator V de Leiden, mutação da protrombina, dosagem de proteína C, proteína S e antitrombina, além de anticorpos antifosfolípides (lúpico, anticardiolipina e anti-beta-2 glicoproteína I).
– Avaliação uterina detalhada: útero septado, miomas submucosos e sinequias podem requerer histeroscopia.
– Outros exames conforme a história: cultura endometrial e testes infecciosos não são rotina para abortamento recorrente, salvo em suspeitas clínicas específicas. Testes genéticos não validados (como algumas variações de MTHFR) não são recomendados, pois não mudam conduta.
Dicas práticas:
– Leve à consulta resultados anteriores, incluindo laudos de cirurgias e ultrassons.
– Anote a linha do tempo das gestações e sintomas.
– Pergunte qual exame tem potencial de mudar o plano terapêutico; priorize esses.
Tratamento, prevenção e próximos passos
Não existe uma única receita. O tratamento do abortamento recorrente é personalizado, baseado na causa provável e no seu histórico. O foco é aumentar a chance de implantação bem-sucedida, reduzir riscos placentários e monitorar de perto a evolução da gravidez.
Intervenções com melhor evidência
– Correção uterina quando indicada:
– Septo uterino: a histeroscopia operatória (metroplastia) costuma melhorar desfechos.
– Miomas submucosos e sinequias: tratamento cirúrgico pode reduzir o risco de novas perdas.
– Otimização hormonal e metabólica:
– Hipotireoidismo: ajuste de levotiroxina para manter TSH em faixa adequada pré-concepção e no início da gestação.
– Hipertireoidismo: controle com antitireoidianos apropriados.
– Diabetes: bom controle glicêmico antes de engravidar e durante toda a gestação.
– Trombofilias e SAF:
– Síndrome antifosfolípide: uso de aspirina em baixa dose associado a heparina de baixo peso molecular durante a gestação, com seguimento próximo.
– Trombofilias hereditárias: conduta individualizada; em alguns casos, aspirina e/ou heparina profilática.
– Suporte de progesterona:
– Pode ser considerado em mulheres com sangramento no início da gestação e histórico de perdas, em especial nos primeiros 12 semanas.
– Acompanhamento intensivo no primeiro trimestre:
– Ultrassonografia precoce para confirmar localização e vitalidade.
– Avaliação seriada de beta-hCG quando apropriado.
– Orientações claras de alerta para retorno imediato em caso de dor intensa, sangramento aumentado ou febre.
Hábitos e estratégias que ajudam:
– Cessar tabagismo e evitar álcool.
– Limitar cafeína a até 200 mg/dia (cerca de 1 a 2 xícaras de café, dependendo da concentração).
– Manter peso saudável e rotina de atividade física segura.
– Iniciar suplementação de ácido fólico (0,4 mg/dia para a maioria; doses maiores podem ser recomendadas em situações específicas).
– Dormir bem e gerenciar estresse: técnicas de respiração, mindfulness e apoio psicológico podem reduzir ansiedade, fator que, embora não cause diretamente a perda, impacta a vivência do processo.
Passos práticos para a próxima tentativa:
1. Marque uma consulta de pré-concepção para revisar exames e plano terapêutico.
2. Atualize vacinas, especialmente se houver sorologias não imunizadas (como rubéola).
3. Defina com o ginecologista quando iniciar aspirina, heparina ou progesterona, se forem indicadas.
4. Planeje o acompanhamento: quando fazer o primeiro ultrassom, com quem manter contato em intercorrências e como ajustar medicações.
5. Estabeleça um canal de apoio emocional (terapia, grupo de suporte, rede de familiares e amigos).
Autocuidado e acompanhamento
O abortamento recorrente mexe com corpo e mente. Reconhecer o luto e buscar suporte não é sinal de fraqueza; é parte do tratamento. Estratégias simples ajudam:
– Crie um plano de cuidado com passos claros para reduzir a sensação de incerteza.
– Combine consultas mais frequentes no início da gestação para dar suporte e detectar precocemente qualquer alteração.
– Considere aconselhamento genético se houver alterações cromossômicas identificadas; entender riscos e probabilidades traz alívio e direção.
– Discuta intervalos entre tentativas. Muitas mulheres podem tentar novamente após 1 a 3 ciclos, mas a recomendação varia conforme o caso (cirurgias, infecções, ajustes hormonais).
– Envolva o parceiro: o cuidado é do casal. Fatores masculinos como fragmentação do DNA espermático podem ser discutidos quando indicado.
Prognóstico realista e esperançoso:
– Mesmo quando não identificamos uma causa específica (o que ocorre em parte dos casos), mais de 60 a 70% dos casais alcançam um nascimento vivo em gestação subsequente com acompanhamento adequado.
– A idade materna influencia as chances de sucesso; por isso, encurtar o tempo entre investigação e nova tentativa pode ser uma estratégia inteligente em algumas situações.
– “A maioria das histórias de abortamento recorrente tem, mais adiante, um capítulo de chegada”: manter o cuidado personalizado e a paciência faz diferença.
Mitos que atrapalham o cuidado:
– “É melhor esperar três perdas para investigar.” Hoje, duas perdas já justificam avaliação.
– “Estresse causa aborto.” Estresse não é causa direta; ainda assim, cuidar da saúde mental é essencial.
– “Sempre é trombofilia.” Trombofilias são uma parte do quebra-cabeça, não a explicação para todos os casos.
– “Nada pode ser feito.” Há várias intervenções eficazes e um plano estruturado aumenta as chances de sucesso.
Fechando o ciclo:
Se você viveu perdas repetidas, saiba que não está só. Procure um ginecologista-obstetra com experiência em abortamento recorrente, leve seus exames e suas perguntas e construa, junto com a equipe, um plano claro para a próxima gestação. Marque sua consulta de avaliação completa, alinhe expectativas e dê o próximo passo com informação, acolhimento e estratégia. A jornada pode ser desafiadora, mas há caminho, cuidado e ciência ao seu lado.
A Dra. Juliana Amato, ginecologista obstetra, discute o abortamento recorrente, que é a perda gestacional precoce ocorrendo mais de duas vezes no primeiro trimestre. O abortamento é comum, afetando uma em cada cinco gestações, mas quando se torna frequente, requer investigação. As principais causas incluem alterações cromossômicas, como monossomias e trissomias, anomalias uterinas e alterações hormonais, como hipotireoidismo e hipertireoidismo descompensados. Além disso, a trombofilia, que é a predisposição à formação de trombos, pode afetar a circulação na gravidez e levar a perdas gestacionais. Exames de sangue podem diagnosticar trombofilia, e tratamentos podem ser realizados durante a gravidez para prevenir complicações. A Dra. Juliana incentiva os espectadores a interagir com o vídeo e se inscrever no canal.